Às vezes eu olho pra minha vida e penso: essa história não está boa. Mas aquela que passou foi incrível. Tinha trilha sonora, emoção, tinha amor e elementos lindos e delicados como olhos brilhantes, vários, olhando pros meus. Tinha mudança, claro, de um lugar para o outro, como tenho feito a bordo de uma gata nômade em uma mochila transparente. E foi em um desses dias que fui andando pela Gávea, lugar onde não moro e nunca morei, que entrei no cinema em uma sessão recém iniciada de Perfect Days, Dias Perfeitos.
Antes de mais nada, devo dizer que nunca soube de uma leva de filmes tão recentes que tivessem tanto a ver comigo. E que por condições alheias a minha vontade, não consegui assistir nenhum. Por isso Anatomia de uma queda, Pobres Criaturas e claro, Dias Perfeitos, rodeavam minha mente com uma obrigação inevitável de que tinha que assistí-los e o que brotasse primeiro na minha frente, seria o escolhido.
Não poderia ser mais feliz ao entrar no cinema dedilhando as cadeiras escuras e me deparar com aquele simpático e profundo ator japonês limpando um banheiro em Tóquio. Depois de passar anos encontrando a fuga da realidade em itens explosivos e destrutivos como o álcool, entendi que às vezes pra dor não há nada melhor do que deixar doer.
Aquele filme quase silencioso com um trilha sonora imbatível foi me mostrando como a simplicidade é indomável perto dos nossos desejos. O que o personagem busca? Limpar banheiros. Busca limpar bem os banheiros com dedicação e simplicidade. Busca limpar os banheiros no presente e em todo caso, deixá-los limpos. A vida, é claro, se impõe com delicadeza. Limpar banheiros também é fugir de alguma coisa. Mas como já escrevi aqui outro dia: estou fugindo. E não estamos todos?
Eu,absolutamente ingênua, tentando fugir, me deparei com uma música que me fez chorar no escuro do cinema. Com medo de sair com o rímel borrado, calculei o tempo exato pra pular até o banheiro e ufa! Tudo sob controle.
Claro, como não? Nós, escritores, vivemos para controlar. Já que é impossível controlar o mundo em si, inventamos nossos próprios mundos onde somos os únicos e soberanos criadores. Além da tristeza inevitável dos eventos cotidianos, eu volto e meia olho pra mim mesma e penso: essa personagem está ruim. Um pouco fraca. Está envelhecendo como todos os seres humanos, o tempo não suspendeu naquela despedida, naquele avião chegando no aeroporto. Não subiu uma música bonita enquanto eu olhava o pôr do sol da janela ou saía escondida de alguma festa que não gostei. Ninguém me olhou com profundidade pela última vez. Pelo contrário, o mundo e as pessoas são tão covardes quanto nós mesmos.
E parece que não há maior motivação e verdade do que viver em um mundo sob o qual não temos controle nenhum. Dias Perfeitos, é claro, mostra isso. Uma taça de vinho (só uma) e um café pra acordar, saí da sessão direto pra Janela Livraria, uma graça, e procurei o novo livro do Gabriel Garcia Marquez. Em Agosto nos vemos. Novo porque nunca tinha sido publicado, é claro. É um livro que entendi porque ele pediu pra jogar no lixo. E entendi também porque não jogaram.
Munida da sensação de descobrir um filme novo especial na minha vida, fiquei pensando como "Dias Perfeitos" se encaixaria nas minhas palavras. Eu queria muito falar sobre ele. Depois, vendo alguma publicação no instagram, descobri que, como não, ele era dirigido por Wim Wenders. Um dos meus diretores preferidos, responsável pelo meu também filme preferido "Paris, Texas". Que mostra a vida acontecendo sem eventos estratosféricos, com beleza na tristeza das alegrias antigas e das novidades cotidianas. Um beijo que nunca mais vai se repetir, uma amizade repentina que passou e até as pessoas que usam o que tem que usar e vão embora.
Os escritores escrevem porque querem controlar a vida. Os bons escritores usam a falta de controle para estampar boas histórias. Acho que mais uma vez o dia começou.