Me admira e espanta uma pessoa que consiga parar um dia sequer e não pensar no absurdo que está acontecendo. Sim, estou falando da existência. Como isso foi acontecer? Independente de lógica, ciência ou crença, é um absurdo tudo isso. Nosso corpo logisticamente programado, nossos olhos que tem mais ou menos as mesmas e diferentes cores, a possibilidade de arrepio da pele. É um absurdo que exista água e mais ainda que exista água dentro da gente. Que sai quando a gente tá triste. Ou feliz demais. É um absurdo que existam felinos com saltos imensos que gostam de Churu e cafuné.
Além do absurdo, existe o desamparo inevitável. Pensar que somos finitos, que podemos literalmente morrer a qualquer momento. Que podemos não morrer hoje, mas pessoas que amamos podem. Que absolutamente tudo pode acontecer. De bom, de ruim e de absurdo. Qual é exatamente a ordem que nos sustenta?
Pensar nisso é desesperador. Porque existem muitas respostas. Mas certeza mesmo, não temos de nenhuma. Nem mesmo da ciência, primeiro por já terem errado algumas vezes e segundo porque vocês viram Matrix e Vanilla Sky.
Dito isso, não há muito o que fazer se não fugir. E fazemos isso o tempo todo, de diferentes maneiras. Fazemos isso nas boates, nos entorpecentes, no trabalho intenso, no esporte, fazemos isso ao ter família, ao não ter família. Fazemos isso quando passamos tempos imensos pensando em relações e também quando batemos no peito pra fugir delas. Não há outra coisa se não fugir pra esquecer o peso da existência.
Existem, claro, os que debruçam sobre ela. Fiz isso intensamente por uns quatro ou cinco anos enquanto cursava filosofia. Me formei e não queria outra coisa se não fugir. Já que todo mundo sempre foge de uma forma ou de outra, resta saber: qual é a sua fuga?
Vanilla Sky
Quando eu era criança tinha uma mochila guardada no armário pra fugir se fosse necessário. (alguém mais tinha isso? queria saber). Do que eu estava fugindo vou precisar de mais alguns anos de terapia pra saber. De fato, nunca fugi. Enfrentei o que precisava até sair, calmamente, pela porta da frente.
Numa dessas fugas, escrevi uma peça. É sobre uma jovem que depois de um fracasso amoroso, decide comprar uma passagem aleatoriamente pra algum lugar do mundo. Ao longo do monólogo, ela fala sobre as histórias de sua vida, que não sabemos se são inventadas ou não. A única certeza que temos é que ela tem um voo pra Frankfurt ás dez e meia. E aí está o nome da peça.
Em um dos ensaios, alguém falou que a personagem, a Clara, mesmo dizendo que só queria adormecer, ficar em paz, não sentir dor, é viciada em sentir coisas. Era só ela ir embora quando algo não desse certo. Mas ir embora simplesmente não era uma opção, ela precisava fazer disso um espetáculo, ela precisava ir pra Frankfurt. Ou montar uma peça.
Coincidência ou não, tenho pesquisado bastante pra passar um tempo fora. Pelo menos um tempo. Outro dia só consegui dormir ás duas da manhã mesmo precisando acordar ás seis e um amigo me perguntou já com alguma certeza “tava pesquisando intercâmbio, né?”.
Tava. É uma fuga, eu respondi. Ainda estou em dúvida se vou fugir pra Paris ou pra Londres. Se vou deitar na cama de um lado pro outro, nadar em uma piscina com correnteza ou fazer o que fiz a vida inteira: escrever. Carregar água na peneira, como dizia Manoel de Barros.
Acho que comentei aqui que uma vez fiz um trabalho intenso de corpo em uma oficina de teatro. No trabalho final o professor virou pra mim e falou: está nas suas mãos. Por que você quer ser atriz?
Por que não? Eu respondi.
O porquê não você já sabe. Tá na hora de procurar o porquê sim. Ele falou antes de me dar um dez.
E foi no porquê sim que segui escritora, vivendo até hoje de uma das poucas coisas que me fazem feliz. Ou no mínimo, sem vontade de fugir.
Porquê a gente foge da vida não é difícil descobrir. Mas ainda fica pairando no ar a outra pergunta, a mais terrível delas: Por que a gente enfrenta?
Algum bom motivo, com certeza, há de haver.